Uma importante questão na teoria política diz respeito ao papel do governo e às funções que deve desempenhar. Igualmente importante é a questão do que dá ao governo o direito de governar, bem como dos limites da autoridade governamental. Alguns eruditos medievais argumentavam que os reis tinham o direito de governar dado por Deus, enquanto outros proclamavam que a nobreza tinha um direito de nascença para governar. Pensadores iluministas começaram a desafiar essas doutrinas. Mas se o poder de governar não foi dado pela vontade divina ou por nascimento, então eram necessárias outras fontes de legitimidade.
O filósofo inglês John Locke foi o primeiro a articular os princípios liberais de governo, a saber, que o propósito do governo era preservar os direitos dos cidadãos à liberdade, à vida e à propriedade, buscar o bem público e punir quem violasse os direitos dos outros. Legislar tornou-se, portanto, a função suprema do governo. Para Locke, uma das principais razões pelas quais as pessoas estariam dispostas a entrar num contrato social e se submeter ao governo é que elas esperariam que o governo regulasse os desacordos e conflitos com neutralidade. Seguindo essa lógica, Locke também foi capaz de descrever as características de um governo ilegítimo. Depreendeu disso que o governo que não respeitasse e protegesse os direitos naturais dos indivíduos – ou limitasse desnecessariamente sua liberdade – não seria legítimo. Locke se opunha, então, ao governo absoluto. Ao contrário de seu contemporâneo Thomas Hobbes, que acreditava que um soberano absoluto era necessário para salvar o povo de um brutal “estado de natureza”, Locke defendia que os poderes e funções do governo deveriam ser limitados.
A centralidade das leis
A maior parte dos escritos de Locke sobre a filosofia política estava centralizada nos direitos e nas leis. Ele definiu o poder político como “um direito de fazer leis com penas de morte”. Discordava da ideia de que uma das principais razões para as pessoas, por vontade própria, deixarem um estado de natureza sem lei seria o fato de não existir um juiz independente em tal situação. Era preferível garantir ao governo o monopólio da violência e das condenações para assegurar um justo estado de direito. Além disso, para Locke, um governo legítimo manteria o princípio da separação dos poderes legislativo e executivo. O poder legislativo seria superior ao executivo – o primeiro teria o poder supremo de estabelecer regras gerais nos assuntos do governo, enquanto o último só seria responsável por impor a lei em casos específicos.
Uma das razões da centralidade das leis nos escritos de Locke é que elas protegem a liberdade. O propósito da lei não é abolir ou restringir, mas preservar e aumentar a liberdade. Na sociedade política, Locke acreditava que “onde não há lei não há liberdade”. As leis, portanto, restringem e garantem a liberdade. Viver em liberdade não é viver sem leis num estado de natureza. Locke disse que a liberdade “não é como nos foi dito, uma permissão para todo homem agir como lhe apraz. (Quem poderia ser livre se outras pessoas pudessem lhe impor seus caprichos?) Ela se define como a liberdade, para cada um, se dispor e ordenar sobre sua própria pessoa, ações, possessões e tudo aquilo que lhe pertence, dentro da permissão das leis”. Em outras palavras, as leis não são apenas capazes de preservar, mas também garantir que a liberdade seja exercida. Sem leis, nossa liberdade estaria limitada por um estado de natureza anárquico, incerto, impedindo que, na prática, houvesse liberdade.
O propósito do governo
A questão da legitimidade era central no pensamento político de Locke. Seguindo o exemplo de Hobbes, ele buscou deduzir o legítimo papel do governo baseado num entendimento do estado humano de natureza.
Locke concordou com Hobbes que um governo legítimo seria baseado num contrato social entre os indivíduos na sociedade. O problema com o estado de natureza é que não haveria juízes ou uma polícia para impor a lei. As pessoas estariam dispostas a entrar na sociedade civil para que o governo assumisse esse papel. Esse seria, portanto, um papel legítimo para o governo. Outro aspecto importante de um governo legítimo seria o comando por meio do consenso do povo. Para Locke, isso não significava, necessariamente, uma democracia – a maioria poderia, de forma racional, decidir que um monarca, uma aristocracia ou uma assembleia democrática deveria governar. Uma questão importante era que o povo garantisse o direito de governar e pudesse, por sua vez, revogar esse privilégio.
Locke era contra um soberano absolutista, forte – conforma defendido por Hobbes -, já que tal figura poderosa limitaria a liberdade de maneira desnecessária. Para Locke, a subordinação total era perigosa. Ele escreveu: “Tenho razão em concluir que aquele que me colocasse sob seu poder sem meu consentimento me usaria como lhe aprouvesse quando me visse naquela situação e prosseguiria até me destruir; pois ninguém pode desejar ter-me em seu poder absoluto, a não ser para me obrigar à força a algo que vem contra meu direito de liberdade, ou seja, fazer de mim um escravo”.
Em vez disso, Locke foi favorável a um papel limitado para o governo. O governo deveria proteger a propriedade privada das pessoas, manter a paz, garantir mercadorias comuns para todo o povo e, o tanto quanto possível, proteger os cidadãos contra invasões estrangeiras. Para Locke, “são essas a origem, o uso e as limitações do poder legislativo (que é o poder supremo) em toda comunidade”. O propósito do governo seria ajustar o que falta no estado de natureza para garantir a liberdade e a prosperidade do povo. Não haveria necessidade de escravizar as pessoas sob um governo absoluto. A função primária do governo seria fazer boas leis para proteger os direitos do povo e impô-las com o bem público em mente.
O direito à revolta
A distinção de Locke entre governos legítimos e ilegítimos também carrega em si a ideia de que a oposição a um governo ilegítimo é aceitável. Locke descreveu um leque de cenários nos quais o povo teria o direito de se revoltar de modo a recuperar o poder concedido ao governo. Por exemplo, o povo poderia legitimamente se rebelar se: seus representantes legítimos não pudessem participar da assembleia; poderes estrangeiros passassem a exercer autoridade sobre o povo; o sistema ou os procedimentos eleitorais fossem alterados sem o consentimento do público; o estado de direito deixasse de existir; ou se o governo tentasse tirar do povo os seus direitos. Locke considerava um governo ilegítimo o mesmo que escravidão. Até ultrapassou alguns limites ao consentir com o regicídio – a execução de um monarca – em circunstâncias em que o monarca tivesse quebrado o contrato social com seu povo. Tendo sido filho de puritanos que apoiaram a causa parlamentarista na Guerra Civil inglesa, essa não era uma questão apenas teórica: os textos de Locke justificam a execução de Carlos I.
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